ATIVOS DIGITAIS NO PLANEJAMENTO PATRIMONIAL SUCESSÓRIO: DESAFIOS JURÍDICOS E PERSPECTIVAS REGULAMENTARES NO DIREITO BRASILEIRO

ATIVOS DIGITAIS NO PLANEJAMENTO PATRIMONIAL SUCESSÓRIO: DESAFIOS JURÍDICOS E PERSPECTIVAS REGULAMENTARES NO DIREITO BRASILEIRO

 

                                                                                                                                                                                                                                                                                                  Carlos Borrelli[1]

 

Resumo

O presente artigo analisa os desafios jurídicos emergentes relacionados aos ativos digitais no contexto do planejamento patrimonial sucessório brasileiro. Com a crescente digitalização das relações sociais e econômicas, surge a necessidade de adequação do direito sucessório tradicional para contemplar bens digitais, criptoativos e demais elementos do patrimônio virtual. O estudo examina as lacunas legislativas existentes, as propostas de reforma do Código Civil através do Projeto de Lei 4/25, os instrumentos jurídicos disponíveis para o planejamento sucessório digital e os desafios práticos enfrentados por operadores do direito.

A metodologia empregada baseia-se em pesquisa bibliográfica, documental e análise jurisprudencial, com abordagem dogmática-jurídica e perspectiva crítico-propositiva. Os resultados evidenciam a urgente necessidade de regulamentação específica e a importância de estratégias jurídicas especializadas, incluindo testamento digital, gestão de chaves privadas e designação de beneficiários em exchanges.

Conclui-se que a evolução tecnológica demanda adaptação normativa e capacitação dos profissionais do direito para enfrentar os novos paradigmas da sucessão patrimonial na era digital.

Palavras-chave: Herança digital. Ativos digitais. Criptoativos. Planejamento sucessório. Direito das sucessões. Testamento digital. Projeto de Lei 4/25.

Abstract

This article investigates the legal challenges arising from the inclusion of digital assets in Brazilian estate planning. The growing digitalization of social and economic relations demands a reinterpretation of traditional succession law to encompass virtual assets, such as crypto-assets and other forms of digital property. The research adopts a dogmatic-legal approach with a critical and propositional perspective, based on bibliographic, documentary, and case law analysis. It examines the current regulatory gaps, ongoing legislative proposals—particularly Bill No. 4/2025—and the available legal instruments, including digital wills, private key management, and beneficiary designation in crypto exchanges. The study concludes that regulatory modernization and the professional training of legal practitioners are essential to ensure legal certainty in the succession of digital estates.

 

  1. INTRODUÇÃO

A revolução digital do século XXI transformou profundamente as relações humanas, criando novas formas de interação social, econômica e jurídica que transcendem os limites físicos tradicionais. Esta transformação tecnológica não apenas alterou a maneira como as pessoas se comunicam, trabalham e se relacionam, mas também redefiniu o conceito de patrimônio, incorporando elementos intangíveis que possuem valor econômico e afetivo significativo. Neste contexto, emerge uma questão jurídica de crescente relevância: como o direito sucessório brasileiro deve lidar com os ativos digitais no planejamento patrimonial?

A digitalização das relações patrimoniais apresenta desafios inéditos para o direito das sucessões, tradicionalmente estruturado para lidar com bens corpóreos e direitos claramente definidos no mundo físico. Contas de e-mail, perfis em redes sociais, arquivos armazenados em nuvem, criptomoedas, tokens não fungíveis (NFTs), domínios de internet e uma infinidade de outros ativos digitais compõem, hoje, parcela significativa do patrimônio de muitas pessoas. Estes bens, caracterizados pela intangibilidade e pela dependência de tecnologias específicas para seu acesso e fruição, demandam uma abordagem jurídica diferenciada que considere suas peculiaridades técnicas e econômicas.

O ordenamento jurídico brasileiro, estruturado sobre as bases do Código Civil de 2002, não contempla de forma específica a sucessão de ativos digitais, criando um vácuo normativo que gera insegurança jurídica tanto para os titulares destes bens quanto para seus potenciais sucessores. Esta lacuna legislativa torna-se ainda mais problemática quando consideramos que, segundo pesquisas recentes, até 10% da riqueza global poderá estar armazenada em tecnologias blockchain até 2027, evidenciando a magnitude econômica dos ativos digitais na contemporaneidade.

A problemática central que orienta este estudo reside na necessidade de compreender como o direito sucessório brasileiro pode e deve evoluir para contemplar adequadamente os ativos digitais, garantindo segurança jurídica na transmissão patrimonial e respeitando os direitos fundamentais envolvidos, especialmente a privacidade e a proteção de dados pessoais. Esta questão assume particular relevância quando consideramos que a ausência de planejamento sucessório adequado pode resultar na perda irreversível de ativos digitais valiosos, como demonstram os casos de criptomoedas inacessíveis devido à perda de chaves privadas.

O presente artigo tem como objetivo geral analisar os desafios jurídicos relacionados aos ativos digitais no planejamento patrimonial sucessório brasileiro, examinando as lacunas legislativas existentes, as propostas de reforma normativa e os instrumentos jurídicos disponíveis para enfrentar esta nova realidade. Como objetivos específicos, busca-se: (i) conceituar e classificar os ativos digitais no contexto sucessório; (ii) examinar o panorama legislativo brasileiro e as propostas de reforma; (iii) analisar especificamente os criptoativos e seus desafios particulares; (iv) identificar instrumentos jurídicos adequados para o planejamento sucessório digital; (v) abordar aspectos tributários e procedimentais relevantes; e (vi) propor soluções práticas para os operadores do direito.

A metodologia empregada baseia-se em pesquisa bibliográfica especializada, análise documental de propostas legislativas e exame de jurisprudência nacional e estrangeira, com abordagem dogmática-jurídica e perspectiva crítico-propositiva. O estudo justifica-se pela crescente relevância prática do tema e pela necessidade de fornecer subsídios teóricos e práticos para operadores do direito que se deparam com questões relacionadas à herança digital em sua atividade profissional.

  1. CONCEITUAÇÃO E CLASSIFICAÇÃO DOS ATIVOS DIGITAIS

2.1 Definição de Herança Digital

A herança digital representa um fenômeno jurídico contemporâneo que emerge da crescente digitalização das relações patrimoniais e pessoais na sociedade da informação. Segundo a doutrina especializada, a herança digital pode ser definida como “a parcela do acervo hereditário composta por bens e informações intangíveis, os quais advindos do mundo digital e que possuem valor econômico e/ou afetivo aos sucessores deixados pelo autor da herança” [1]. Esta conceituação evidencia a natureza híbrida dos ativos digitais, que podem apresentar tanto valor patrimonial mensurável quanto significado afetivo ou existencial para os sucessores.

A evolução terminológica do conceito de herança digital reflete a própria evolução tecnológica e sua incorporação pelo direito. Inicialmente, a discussão centrava-se apenas em contas de e-mail e perfis em redes sociais, elementos que possuíam primordialmente valor afetivo ou existencial. Contudo, com o desenvolvimento de novas tecnologias e modelos de negócio digitais, a herança digital passou a abranger ativos com valor econômico significativo, como criptomoedas, NFTs, contas monetizadas em plataformas digitais e propriedade intelectual digital.

O conceito de herança digital distingue-se do patrimônio tradicional por suas características específicas: intangibilidade, dependência tecnológica para acesso, volatilidade de valor, questões de privacidade e proteção de dados, e complexidade na identificação e recuperação. Estas características demandam uma abordagem jurídica diferenciada que considere não apenas os aspectos patrimoniais, mas também os direitos da personalidade e a proteção de dados pessoais do falecido e de terceiros.

A doutrina contemporânea tem enfatizado que a herança digital não se limita aos bens com valor econômico, abrangendo também elementos com valor afetivo, histórico ou cultural. Fotografias digitais, correspondências eletrônicas, arquivos pessoais e registros de vida digital constituem parte significativa do legado que uma pessoa deixa na era digital. Esta amplitude conceitual torna ainda mais complexa a regulamentação jurídica da matéria, pois exige equilibrar interesses patrimoniais, direitos da personalidade e proteção de dados.

2.2 Tipologia dos Bens Digitais

A classificação dos bens digitais no contexto sucessório tem sido objeto de intenso debate doutrinário, com diferentes propostas de sistematização que buscam organizar a diversidade de ativos digitais existentes. A tipologia mais aceita pela doutrina brasileira divide os bens digitais em três categorias principais: bens digitais patrimoniais, bens digitais existenciais e bens digitais híbridos.

Os bens digitais patrimoniais caracterizam-se por possuir valor econômico direto e mensurável, sendo passíveis de avaliação pecuniária e transmissão sucessória nos moldes tradicionais do direito das sucessões. Nesta categoria incluem-se criptomoedas, contas bancárias digitais, investimentos em plataformas eletrônicas, domínios de internet com valor comercial, contas monetizadas em redes sociais, NFTs com valor de mercado, licenças de software com valor patrimonial, e-books e outros conteúdos digitais comercializáveis. Estes ativos seguem, em princípio, as regras gerais da sucessão patrimonial, devendo ser inventariados e partilhados entre os herdeiros conforme a legislação sucessória vigente.

Os bens digitais existenciais relacionam-se aos direitos da personalidade e aspectos não patrimoniais da vida digital do falecido. Compreendem correspondências eletrônicas privadas, fotografias pessoais, diários digitais, perfis em redes sociais sem valor comercial, arquivos pessoais sem valor econômico, e demais elementos que refletem a personalidade, intimidade e vida privada do de cujus. A transmissibilidade destes bens é controversa na doutrina, pois envolve direitos personalíssimos que, em princípio, são intransmissíveis. A questão torna-se ainda mais complexa quando consideramos a proteção de dados pessoais e a privacidade de terceiros que possam estar envolvidos nestas informações.

Os bens digitais híbridos apresentam características tanto patrimoniais quanto existenciais, constituindo a categoria mais complexa e problemática do ponto de vista jurídico. Exemplos típicos incluem perfis em redes sociais que possuem valor comercial, mas também conteúdo pessoal, blogs ou canais que geram receita mas contêm expressões da personalidade do autor, contas de jogos online com itens valiosos mas também progressão pessoal, e arquivos que misturam conteúdo comercial e pessoal. A sucessão destes bens demanda análise caso a caso, considerando os aspectos patrimoniais transmissíveis e respeitando os direitos da personalidade intransmissíveis.

Uma subcategoria especial e crescentemente relevante é representada pelos criptoativos, que merecem análise específica devido às suas características técnicas particulares. Segundo a Instrução Normativa RFB nº 1.888/2019, criptoativo é “a representação digital de valor denominada em sua própria unidade de conta, cujo preço pode ser expresso em moeda soberana local ou estrangeira, transacionado eletronicamente com a utilização de criptografia e de tecnologias de registros distribuídos” [2]. Esta definição evidencia o caráter patrimonial dos criptoativos e sua natureza de bem digital em sentido estrito.

Os criptoativos apresentam desafios específicos para o planejamento sucessório devido à sua dependência de chaves criptográficas privadas para acesso. Diferentemente de outros ativos digitais que podem ser recuperados através de procedimentos administrativos ou judiciais junto às plataformas que os hospedam, os criptoativos custodiados em carteiras pessoais (wallets) tornam-se inacessíveis caso as chaves privadas sejam perdidas. Esta característica técnica torna fundamental o planejamento sucessório adequado para evitar a perda irreversível destes ativos.

A classificação dos bens digitais tem implicações práticas importantes para o planejamento sucessório, pois determina os instrumentos jurídicos aplicáveis, os procedimentos de transmissão e as limitações legais existentes. Bens digitais patrimoniais seguem as regras gerais da sucessão, enquanto bens existenciais demandam consideração especial dos direitos da personalidade. Bens híbridos exigem análise diferenciada que separe os aspectos transmissíveis dos intransmissíveis, respeitando tanto os interesses patrimoniais dos herdeiros quanto os direitos fundamentais do falecido e de terceiros.

III. PANORAMA LEGISLATIVO BRASILEIRO

3.1 Ausência de Regulamentação Específica

O ordenamento jurídico brasileiro enfrenta um desafio significativo na regulamentação da herança digital, caracterizado pela ausência de normas específicas que contemplem adequadamente a sucessão de ativos digitais. O Código Civil de 2002, principal diploma normativo do direito sucessório brasileiro, foi elaborado em um contexto tecnológico substancialmente diferente do atual, quando a internet ainda estava em seus estágios iniciais de popularização e os ativos digitais eram praticamente inexistentes [3].

Esta lacuna legislativa não é meramente técnica, mas reflete uma defasagem estrutural entre o ritmo da evolução tecnológica e a capacidade de adaptação do sistema jurídico. Enquanto a tecnologia digital evoluiu exponencialmente nas últimas duas décadas, criando novas formas de patrimônio e relações jurídicas, o direito sucessório permaneceu ancorado em conceitos e institutos desenvolvidos para uma realidade predominantemente física e tangível.

A ausência de regulamentação específica manifesta-se em diversos aspectos problemáticos. Primeiro, não há definição legal clara do que constitui patrimônio digital ou herança digital, deixando aos operadores do direito a tarefa de construir conceitos através da interpretação doutrinária e jurisprudencial. Segundo, inexistem procedimentos específicos para identificação, avaliação e transmissão de ativos digitais no processo sucessório. Terceiro, não há regras claras sobre o acesso a contas e plataformas digitais do falecido, criando conflitos entre os direitos dos herdeiros e as políticas de privacidade das empresas de tecnologia.

A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD – Lei nº 13.709/2018), embora represente um avanço significativo na proteção de dados pessoais, não oferece diretrizes específicas sobre o tratamento de dados pessoais no contexto sucessório [4]. A lei estabelece princípios gerais de proteção de dados e direitos dos titulares, mas não aborda especificamente como estes direitos devem ser exercidos após a morte do titular ou como conciliar a proteção de dados com os direitos sucessórios.

Similarmente, o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil, mas não contempla especificamente questões sucessórias [5]. Embora a lei trate de temas como privacidade, proteção de dados e responsabilidade civil na internet, não oferece soluções para os desafios específicos da herança digital.

Esta ausência de regulamentação específica tem gerado interpretações jurisprudenciais divergentes, criando insegurança jurídica para os operadores do direito e para os jurisdicionados. Alguns tribunais têm aplicado analogicamente as regras gerais do direito sucessório aos ativos digitais, enquanto outros têm enfatizado a proteção da privacidade e dos dados pessoais do falecido. Esta divergência interpretativa evidencia a necessidade urgente de regulamentação específica que harmonize os diferentes interesses em jogo.

3.2 Projeto de Lei 4/25 e a Reforma do Código Civil

Reconhecendo a necessidade urgente de modernização do ordenamento jurídico brasileiro para enfrentar os desafios da era digital, o Senado Federal constituiu uma Comissão de Juristas responsável pela elaboração de anteprojeto de atualização do Código Civil. Esta comissão, presidida pelo Ministro Luis Felipe Salomão do Superior Tribunal de Justiça, tem como objetivo adaptar o Código Civil às transformações sociais, tecnológicas e econômicas ocorridas desde sua promulgação em 2002 [6].

O Projeto de Lei 4/25, recentemente apresentado ao Senado Federal, representa marco significativo na regulamentação da herança digital no Brasil, propondo alterações substanciais no Código Civil para contemplar especificamente a sucessão de bens digitais. Esta proposta legislativa surge como resposta às crescentes demandas da sociedade digital e às lacunas identificadas na legislação vigente.

Conceituação Abrangente de Bens Digitais

Uma das principais inovações do Projeto de Lei 4/25 é a definição legal abrangente de bens digitais. O texto proposto estabelece conceituação específica que busca contemplar a diversidade de ativos digitais existentes e futuros:

“Compreende-se como bens digitais, o patrimônio intangível do falecido, abrangendo, entre outros, senhas, dados financeiros, perfis de redes sociais, contas, arquivos de conversas, vídeos e fotos, arquivos de outra natureza, pontuação em programas de recompensa ou incentivo e qualquer conteúdo de natureza econômica, armazenado ou acumulado em ambiente virtual, de titularidade do autor da herança” [7].

Esta definição apresenta características importantes que merecem análise detalhada. Primeiro, utiliza o termo “patrimônio intangível”, evidenciando o reconhecimento da natureza imaterial dos bens digitais. Segundo, emprega formulação exemplificativa (“entre outros”), permitindo que a norma acompanhe a evolução tecnológica sem necessidade de constantes atualizações legislativas. Terceiro, inclui expressamente elementos com “natureza econômica”, confirmando o caráter patrimonial destes bens para fins sucessórios.

A inclusão específica de “pontuação em programas de recompensa ou incentivo” é particularmente relevante, pois aborda questão controversa na jurisprudência atual. Esta disposição pode resolver disputas sobre a transmissibilidade de milhas aéreas, pontos de fidelidade e outros benefícios similares, conferindo maior segurança jurídica a estas relações.

Critério de Valor Econômico para Inclusão na Herança

O projeto estabelece critério objetivo para inclusão de bens digitais na herança, determinando que apenas aqueles com “valor economicamente considerável” devem ser objeto de transmissão sucessória. Este critério busca equilibrar a proteção do patrimônio digital com a praticidade dos procedimentos sucessórios, evitando que bens de valor insignificante compliquem desnecessariamente o processo de inventário.

A definição do que constitui “valor economicamente considerável” será fundamental para a aplicação prática da norma. O projeto não estabelece valores específicos, deixando esta determinação para regulamentação posterior ou construção jurisprudencial. Esta abordagem oferece flexibilidade para adaptação a diferentes contextos econômicos e tecnológicos, mas pode gerar incertezas iniciais sobre a aplicação da norma.

Proteção da Privacidade e Mensagens Privadas

O Projeto de Lei 4/25 dedica atenção especial à proteção da privacidade do falecido, estabelecendo regra específica sobre o acesso a mensagens privadas:

“Os herdeiros são proibidos de acessar as mensagens privadas do autor da herança armazenadas em ambiente virtual, salvo expressa disposição de última vontade” [8].

Esta disposição busca equilibrar os direitos sucessórios com a proteção da intimidade e vida privada do falecido, reconhecendo que nem todos os elementos digitais devem ser automaticamente acessíveis aos herdeiros. A exceção para “expressa disposição de última vontade” preserva a autonomia do titular dos dados, permitindo que ele próprio determine quais informações privadas podem ser acessadas após sua morte.

A proteção das mensagens privadas reflete preocupação legítima com a privacidade não apenas do falecido, mas também de terceiros que possam estar envolvidos nas comunicações. Esta abordagem alinha-se com princípios da Lei Geral de Proteção de Dados e com tendências internacionais de proteção da privacidade digital.

 

Obrigações Procedimentais no Inventário

O projeto estabelece obrigações específicas para o inventariante quanto aos bens digitais, determinando que este deve “informar ao juízo do inventário ou fazer constar na escritura pública a existência de bens digitais de titularidade do falecido” [9]. Esta disposição visa garantir que os bens digitais sejam adequadamente identificados e incluídos no processo sucessório.

Esta obrigação procedimental é fundamental para a efetividade da regulamentação, pois muitos bens digitais podem passar despercebidos durante o inventário devido à sua natureza intangível e à falta de documentação física. A exigência de declaração específica pelo inventariante cria mecanismo de controle que pode reduzir a sonegação de bens digitais e garantir maior transparência no processo sucessório.

A possibilidade de fazer constar a existência de bens digitais “na escritura pública” refere-se aos inventários extrajudiciais, demonstrando que a regulamentação contempla tanto os procedimentos judiciais quanto os cartorários. Esta abrangência é importante para garantir que a norma seja aplicável independentemente da modalidade de inventário escolhida.

Perspectivas de Aprovação e Implementação

Se aprovado, o Projeto de Lei 4/25 proporcionará regulamentação mais específica e direcionada sobre a sucessão de bens digitais, oferecendo maior segurança jurídica para operadores do direito e jurisdicionados. A aprovação desta legislação representará avanço significativo na modernização do direito sucessório brasileiro e no reconhecimento oficial da importância dos ativos digitais no patrimônio contemporâneo.

Contudo, o processo legislativo pode ser longo e sujeito a modificações, especialmente considerando a complexidade técnica e jurídica da matéria. Durante a tramitação, é provável que o projeto receba contribuições de especialistas, entidades representativas e da sociedade civil, podendo resultar em aperfeiçoamentos do texto original.

A implementação efetiva da nova regulamentação dependerá não apenas da aprovação legislativa, mas também do desenvolvimento de regulamentação complementar, capacitação dos operadores do direito e adaptação dos procedimentos cartorários e judiciais. Estes desafios de implementação devem ser considerados desde a fase de elaboração da norma para garantir sua eficácia prática.

  1. CRIPTOATIVOS NO PLANEJAMENTO SUCESSÓRIO

4.1 Natureza Jurídica e Patrimonialidade

Os criptoativos representam uma das categorias mais complexas e relevantes de ativos digitais no contexto do planejamento sucessório contemporâneo. Sua importância decorre não apenas do valor econômico significativo que podem representar, mas também das características técnicas específicas que os distinguem de outros tipos de bens digitais e criam desafios únicos para a transmissão sucessória.

A natureza jurídica dos criptoativos tem sido objeto de intenso debate doutrinário e regulatório. No Brasil, a Instrução Normativa RFB nº 1.888/2019 fornece a definição oficial mais abrangente, caracterizando criptoativo como “a representação digital de valor denominada em sua própria unidade de conta, cujo preço pode ser expresso em moeda soberana local ou estrangeira, transacionado eletronicamente com a utilização de criptografia e de tecnologias de registros distribuídos, que pode ser utilizado como forma de investimento, instrumento de transferência de valores ou acesso a serviços, e que não constitui moeda de curso legal” [10].

Esta definição evidencia o aspecto patrimonial inequívoco dos criptoativos, pois reconhece expressamente sua função como forma de investimento e instrumento de transferência de valores. A representação digital de valor, aliada à possibilidade de expressão do preço em moeda soberana, confere aos criptoativos características típicas de bens patrimoniais, tornando-os passíveis de avaliação econômica e, consequentemente, de transmissão sucessória.

A tecnologia blockchain, que fundamenta a maioria dos criptoativos, introduz elementos técnicos que impactam diretamente sua natureza jurídica e transmissibilidade. A blockchain pode ser conceituada como uma espécie de livro-razão distribuído, capaz de registrar todas as transações de forma imutável e transparente, incluindo informações sobre quantia, remetente, destinatário e local de registro [11]. Esta tecnologia garante a autenticidade e a propriedade dos criptoativos através de mecanismos criptográficos, eliminando a necessidade de intermediários tradicionais como bancos ou cartórios.

A mudança de paradigma representada pelos criptoativos é evidenciada por projeções que indicam que até 10% da riqueza global poderá estar armazenada em blockchain até 2027 [12]. Esta perspectiva demonstra que os criptoativos não constituem apenas uma inovação tecnológica temporária, mas representam uma transformação estrutural na forma como valor e propriedade são conceituados e transferidos na economia digital.

Do ponto de vista sucessório, não há obscuridade quanto à transmissibilidade dos criptoativos, uma vez que são bens digitais em sentido estrito dotados de caráter patrimonial inequívoco. A Subcomissão de Direito Civil Digital, responsável pela reforma do Código Civil, reconheceu expressamente esta realidade ao incluir criptoativos no rol exemplificativo de patrimônio digital [13]. Esta inclusão confirma que os criptoativos devem ser tratados como bens patrimoniais para fins sucessórios, seguindo as regras gerais da transmissão hereditária.

Contudo, a patrimonialidade dos criptoativos não resolve todos os desafios relacionados à sua sucessão. As características técnicas específicas destes ativos, particularmente sua dependência de chaves criptográficas privadas para acesso, criam obstáculos práticos significativos que demandam soluções jurídicas e tecnológicas específicas.

4.2 Modalidades de Custódia e Desafios Práticos

A sucessão de criptoativos apresenta desafios práticos únicos que decorrem das diferentes modalidades de custódia disponíveis e das características técnicas específicas destes ativos. Compreender estas modalidades é fundamental para o planejamento sucessório adequado e para a identificação das estratégias jurídicas mais apropriadas em cada situação.

Existem atualmente duas modalidades principais de custódia de criptoativos: custódia através de corretoras especializadas (exchanges) e autocustódia através de carteiras digitais pessoais (wallets). Cada modalidade apresenta características específicas que impactam diretamente os procedimentos sucessórios e os desafios enfrentados pelos herdeiros.

Custódia através de Exchanges

Na custódia através de exchanges, os criptoativos são mantidos em contas junto a corretoras especializadas, que detêm efetivamente a posse técnica dos ativos. Esta modalidade assemelha-se, em certa medida, aos investimentos tradicionais mantidos em corretoras de valores mobiliários, facilitando os procedimentos sucessórios através de mecanismos administrativos e judiciais conhecidos.

Algumas exchanges têm desenvolvido procedimentos específicos para sucessão, reconhecendo a importância crescente desta questão. A Binance, por exemplo, oferece um “recurso de herança” que permite a um representante do patrimônio do falecido ou beneficiário autorizado solicitar a transferência dos criptoativos mediante comprovação da morte do titular e da condição de herdeiro [14]. Estes procedimentos administrativos podem simplificar significativamente o processo sucessório, evitando a necessidade de medidas judiciais complexas.

Quando os procedimentos administrativos não são suficientes ou disponíveis, os interessados podem recorrer a medidas judiciais para acessar os criptoativos mantidos em exchanges. No processo de inventário, os sucessores podem requerer a expedição de ofícios às corretoras para verificação de saldos e transferência dos ativos. A Instrução Normativa RFB nº 1.888/2019, que instituiu a obrigatoriedade de prestação de informações sobre operações com criptoativos à Receita Federal, facilita esta investigação patrimonial [15].

O sistema Infojud pode ser utilizado pelo inventariante para solicitar informações sobre operações com criptoativos declaradas à Receita Federal, auxiliando na identificação de exchanges onde o falecido mantinha investimentos. Após a obtenção destas informações, podem ser expedidos ofícios específicos às corretoras para verificação de saldos e procedimentos de transferência.

Autocustódia através de Wallets

A autocustódia através de carteiras digitais pessoais representa o maior desafio para o planejamento sucessório de criptoativos. Nesta modalidade, o titular mantém controle direto sobre seus ativos através de chaves criptográficas privadas, eliminando a dependência de terceiros, mas criando riscos específicos para a transmissão sucessória.

O acesso aos criptoativos em autocustódia depende de uma senha privada composta por 12 ou 24 palavras em inglês, conhecida como “seed phrase” ou “mnemonic phrase”. Esta sequência de palavras é matematicamente vinculada às chaves privadas que controlam os criptoativos e sua perda torna os ativos praticamente irrecuperáveis. Diferentemente de senhas tradicionais, que podem ser redefinidas através de procedimentos administrativos, as chaves privadas de criptoativos são irreversíveis e não podem ser recuperadas por terceiros.

A magnitude do problema da perda de chaves privadas é evidenciada por estimativas que indicam que cerca de 7,8 milhões de bitcoins estão permanentemente perdidos, equivalendo a aproximadamente R$ 2,6 trilhões em valores atuais [16]. Esta realidade demonstra que a ausência de planejamento sucessório adequado pode resultar na perda total e irreversível de patrimônio significativo.

Embora existam tecnologias de recuperação que utilizam algoritmos para gerar e testar milhões de combinações de senhas, as chances de êxito são extremamente baixas devido à complexidade criptográfica envolvida. Estas soluções tecnológicas são mais eficazes quando há informações parciais sobre as chaves privadas, mas tornam-se impraticáveis quando não há qualquer informação disponível.

Estatísticas e Realidade do Mercado

Pesquisas especializadas revelam dados preocupantes sobre o planejamento sucessório de criptoativos. O estudo realizado pelo Cremation Institute sobre planejamento patrimonial de criptomoedas demonstrou que, embora quase 90% dos investidores em criptomoedas se preocupem com o destino destes ativos após sua morte, apenas 23% possuem algum tipo de planejamento sucessório específico [17].

Esta discrepância entre preocupação e ação efetiva evidencia a necessidade de maior conscientização sobre a importância do planejamento sucessório digital e de desenvolvimento de instrumentos jurídicos e tecnológicos que facilitem este planejamento. A complexidade técnica dos criptoativos não deve ser um obstáculo intransponível para o planejamento sucessório adequado.

Os desafios práticos da sucessão de criptoativos demandam uma abordagem integrada que combine soluções jurídicas e tecnológicas. O planejamento sucessório eficaz deve considerar as características específicas de cada modalidade de custódia e implementar estratégias adequadas para garantir que os herdeiros possam acessar os ativos digitais do falecido sem comprometer a segurança durante a vida do titular.

  1. INSTRUMENTOS JURÍDICOS PARA PLANEJAMENTO SUCESSÓRIO DIGITAL

5.1 Testamento Digital

O testamento digital emerge como o principal instrumento jurídico para o planejamento sucessório de ativos digitais, representando uma adaptação dos institutos testamentários tradicionais às necessidades específicas da era digital. Sua importância decorre da capacidade de conciliar soluções jurídicas com as peculiaridades técnicas dos ativos digitais, oferecendo segurança jurídica tanto para o testador quanto para os beneficiários.

A fundamentação legal do testamento digital encontra respaldo no artigo 1.857, §2º, do Código Civil, que estabelece que as disposições testamentárias não se limitam a conteúdos exclusivamente patrimoniais [18]. Esta disposição permite que o testador inclua instruções específicas sobre como acessar senhas, chaves privadas e outros elementos técnicos necessários para a fruição dos ativos digitais, conferindo eficácia jurídica a informações que, embora não sejam bens em si mesmas, são essenciais para o acesso ao patrimônio digital.

O testamento digital deve ser compreendido não como uma nova modalidade testamentária, mas como uma aplicação específica dos instrumentos testamentários existentes para contemplar ativos digitais. Esta abordagem garante que o testamento digital se beneficie de toda a construção doutrinária e jurisprudencial existente sobre testamentos, conferindo-lhe maior segurança jurídica e previsibilidade.

Modalidades Testamentárias Aplicáveis

A escolha da modalidade testamentária adequada para o planejamento sucessório digital deve considerar as características específicas dos ativos digitais e as necessidades de segurança e privacidade do testador. Nem todas as modalidades testamentárias são igualmente adequadas para esta finalidade.

O testamento público apresenta limitações significativas para o planejamento sucessório digital. A publicidade inerente a esta modalidade testamentária conflita diretamente com a necessidade de manter em sigilo informações sensíveis como senhas, chaves privadas e códigos de acesso. A divulgação pública destas informações comprometeria a segurança dos ativos digitais e poderia facilitar acessos não autorizados por terceiros mal-intencionados.

O testamento cerrado ou místico apresenta-se como a modalidade mais adequada para o planejamento sucessório digital. Caracterizado como aquele escrito em carta sigilosa pelo próprio testador ou por terceiro a seu rogo, e completado com instrumento de aprovação pelo oficial público, o testamento cerrado permite que o testador mantenha em sigilo o conteúdo específico do testamento [19]. Esta característica é fundamental para a proteção de informações sensíveis relacionadas aos ativos digitais.

No testamento cerrado, embora seja necessária a aprovação perante tabelião, o testador não revela o conteúdo interno do documento, que permanece lacrado em sua posse até a abertura judicial após sua morte, conforme estabelece o artigo 1.875 do Código Civil. Esta modalidade permite que o testador inclua instruções detalhadas sobre acesso a carteiras digitais, senhas de exchanges, chaves privadas de criptoativos e outros elementos técnicos necessários, sem comprometer a segurança durante sua vida.

O testamento particular também pode ser utilizado para o planejamento sucessório digital, especialmente em situações que demandem maior flexibilidade e rapidez na elaboração. Contudo, esta modalidade exige o cumprimento de formalidades específicas, como a presença de três testemunhas e a leitura do testamento perante elas, o que pode comprometer o sigilo de informações sensíveis sobre ativos digitais.

Conteúdo e Estrutura do Testamento Digital

O testamento digital deve ser estruturado de forma a contemplar tanto as disposições patrimoniais tradicionais quanto as instruções específicas necessárias para o acesso aos ativos digitais. Esta estruturação requer cuidado especial para equilibrar clareza, segurança e eficácia jurídica.

As disposições patrimoniais devem seguir as regras gerais do direito sucessório, respeitando a legítima dos herdeiros necessários e observando as limitações legais para disposições testamentárias. Os ativos digitais com valor econômico devem ser especificamente identificados e sua destinação claramente estabelecida, incluindo criptomoedas, NFTs, contas monetizadas, domínios de internet e outros bens digitais patrimoniais.

As instruções técnicas constituem o elemento diferencial do testamento digital e devem ser elaboradas com particular atenção à segurança e à praticidade. Estas instruções podem incluir: localização de carteiras digitais e dispositivos de armazenamento; senhas e códigos de acesso a exchanges e plataformas digitais; chaves privadas ou instruções para sua recuperação; procedimentos específicos para acesso a diferentes tipos de ativos; contatos de prestadores de serviços especializados; e orientações sobre medidas de segurança a serem observadas pelos herdeiros.

A organização das informações no testamento digital deve considerar diferentes níveis de sensibilidade e urgência. Informações menos sensíveis podem ser incluídas diretamente no corpo do testamento, enquanto dados críticos como chaves privadas podem ser referenciados através de instruções para sua localização em locais seguros. Esta abordagem em camadas permite maior flexibilidade e segurança na gestão das informações.

5.2 Estratégias Jurídicas Específicas para Criptoativos

Diante da ausência de regulamentação específica no ordenamento jurídico brasileiro, torna-se fundamental o desenvolvimento de estratégias jurídicas especializadas para assegurar a sucessão de criptoativos. Estas estratégias visam proporcionar maior segurança tanto ao titular quanto aos seus herdeiros, considerando as características técnicas únicas destes ativos e os riscos específicos associados à sua transmissão.

Gestão Estratégica de Chaves Privadas

A gestão adequada das chaves privadas constitui o elemento central de qualquer estratégia sucessória para criptoativos em autocustódia. O armazenamento seguro destas chaves, seja através de cofres digitais especializados ou mediante confiança a terceiros qualificados, representa medida essencial para evitar a perda irreversível dos ativos. Esta gestão deve equilibrar segurança durante a vida do titular com acessibilidade para os herdeiros após sua morte.

O emprego de carteiras com múltiplas assinaturas (multisig wallets) emerge como solução tecnológica sofisticada que pode facilitar significativamente a transferência de criptoativos aos herdeiros. Estas carteiras exigem múltiplas chaves privadas para autorizar transações, permitindo que o titular distribua as chaves entre diferentes pessoas ou entidades de confiança. Esta distribuição pode incluir o próprio titular, herdeiros designados, advogados especializados ou instituições de custódia, criando um sistema de segurança redundante que protege contra perda acidental ou má-fé de qualquer parte individual.

A configuração de carteiras multisig para fins sucessórios deve considerar diferentes cenários e estabelecer protocolos claros para ativação dos mecanismos de herança. Por exemplo, pode-se estabelecer que duas de três chaves sejam necessárias para movimentar os ativos, sendo uma mantida pelo titular, uma por um herdeiro designado e uma terceira por um advogado ou instituição de confiança. Após a morte do titular, os portadores das outras chaves podem colaborar para acessar os ativos conforme as disposições testamentárias.

Designação de Beneficiários em Exchanges

A nomeação prévia de herdeiros junto às corretoras de criptomoedas representa estratégia prática e eficaz para ativos mantidos em custódia. Diversas exchanges já implementaram funcionalidades que permitem aos usuários indicarem beneficiários, estabelecendo procedimentos específicos para transferência dos ativos em caso de falecimento do titular. Esta abordagem reduz significativamente o risco de perda do patrimônio digital e simplifica os procedimentos sucessórios.

A designação de beneficiários em exchanges deve ser realizada de forma cuidadosa, considerando as políticas específicas de cada plataforma e as implicações jurídicas da escolha. É recomendável que o titular mantenha documentação atualizada sobre estas designações e comunique aos beneficiários sobre sua existência e os procedimentos necessários para ativação dos direitos sucessórios.

Algumas exchanges oferecem recursos avançados de planejamento sucessório, incluindo a possibilidade de estabelecer múltiplos beneficiários com diferentes percentuais de participação, definir condições específicas para ativação da herança e estabelecer períodos de carência para verificação da morte do titular. Estes recursos devem ser utilizados em conjunto com instrumentos jurídicos tradicionais para garantir maior segurança e conformidade legal.

Testamentos Especializados para Ativos Digitais

A inclusão de instruções detalhadas sobre ativos digitais em testamentos constitui estratégia fundamental que pode minimizar disputas e facilitar significativamente o processo sucessório. Contudo, esta inclusão deve ser realizada com cuidado especial, considerando as implicações de segurança e privacidade específicas dos criptoativos.

O testamento público, embora ofereça maior segurança jurídica em termos de validade e autenticidade, pode não constituir a opção mais adequada para informações sensíveis como chaves privadas de criptoativos. A publicidade inerente a esta modalidade testamentária pode comprometer a segurança dos ativos, facilitando acessos não autorizados por terceiros mal-intencionados que tenham conhecimento das informações contidas no testamento.

Por esta razão, o testamento cerrado apresenta-se como alternativa preferencial para o planejamento sucessório de criptoativos, permitindo a inclusão de instruções técnicas específicas sem comprometer a confidencialidade durante a vida do testador. Esta modalidade permite incluir informações como localização de carteiras digitais, procedimentos para acesso a chaves privadas, contatos de prestadores de serviços especializados e orientações técnicas para os herdeiros.

5.3 Outras Estratégias de Planejamento

Além das estratégias específicas para criptoativos, outras abordagens jurídicas podem ser empregadas para o planejamento sucessório de ativos digitais em geral, oferecendo alternativas ou complementos aos instrumentos já mencionados.

Holding de Ativos Digitais

A holding de ativos digitais representa uma estratégia empresarial sofisticada para o planejamento sucessório digital, especialmente adequada para patrimônios digitais de grande valor ou complexidade. Esta estrutura consiste na constituição de uma pessoa jurídica específica para deter e administrar ativos digitais, facilitando sua gestão e transmissão sucessória [20].

A holding de ativos digitais oferece diversas vantagens para o planejamento sucessório. Primeiro, permite a profissionalização da gestão dos ativos digitais através da contratação de administradores especializados e da implementação de procedimentos padronizados de segurança e acesso. Segundo, facilita a transmissão sucessória através da transferência de participações societárias, que seguem procedimentos mais simples e conhecidos do que a transmissão direta de ativos digitais complexos.

Terceiro, oferece flexibilidade na estruturação da sucessão através de diferentes classes de ações, acordos de acionistas e outros instrumentos societários que podem contemplar as necessidades específicas dos herdeiros. Quarto, permite a continuidade da gestão dos ativos digitais mesmo após a morte do titular, evitando interrupções que poderiam comprometer o valor ou a acessibilidade dos ativos.

A constituição de uma holding de ativos digitais deve observar as regras gerais do direito societário e considerar aspectos específicos relacionados aos ativos digitais. O objeto social deve ser suficientemente amplo para contemplar a diversidade de ativos digitais existentes e futuros. Os procedimentos de governança corporativa devem incluir protocolos específicos para segurança digital e gestão de chaves criptográficas.

Mandato Post Mortem

O mandato post mortem constitui outro instrumento relevante para o planejamento sucessório digital, permitindo que o titular dos ativos digitais designe uma pessoa de confiança para executar tarefas específicas relacionadas aos ativos digitais após sua morte. Este instrumento é particularmente útil para situações que demandam conhecimento técnico especializado ou ações imediatas para preservação dos ativos.

O mandato post mortem pode contemplar diversas atividades relacionadas aos ativos digitais: transferência de criptoativos de carteiras pessoais para carteiras dos herdeiros; acesso a exchanges e plataformas digitais para verificação de saldos e transferências; gestão temporária de contas monetizadas para preservação de receitas; backup e preservação de arquivos digitais importantes; e comunicação com prestadores de serviços digitais para implementação de procedimentos sucessórios.

A eficácia do mandato post mortem depende de sua adequada estruturação jurídica e da escolha criteriosa do mandatário. O instrumento deve ser claro quanto às atribuições específicas do mandatário, aos limites de sua atuação e aos procedimentos a serem seguidos. O mandatário deve possuir conhecimento técnico adequado sobre ativos digitais e merecer absoluta confiança do mandante.

Soluções Tecnológicas Integradas

O planejamento sucessório digital pode beneficiar-se de soluções tecnológicas específicas que complementam os instrumentos jurídicos tradicionais. Estas soluções incluem carteiras digitais com funcionalidades de herança, serviços de custódia especializada e plataformas de gestão de ativos digitais que incorporam recursos sucessórios.

Algumas carteiras digitais modernas oferecem funcionalidades de herança que permitem ao titular configurar procedimentos automáticos de transferência de ativos em caso de inatividade prolongada. Estes sistemas utilizam mecanismos como “dead man’s switch” que transferem automaticamente os ativos para beneficiários pré-designados caso o titular não confirme sua atividade dentro de prazos estabelecidos.

Serviços de custódia especializada oferecem soluções profissionais para armazenamento e gestão de ativos digitais, incluindo procedimentos específicos para sucessão. Estes serviços combinam segurança técnica avançada com procedimentos jurídicos estruturados, oferecendo maior tranquilidade para titulares de patrimônios digitais significativos.

Plataformas de gestão integrada permitem a centralização de informações sobre diferentes tipos de ativos digitais, facilitando o planejamento sucessório e a gestão pelos herdeiros. Estas plataformas podem incluir inventários detalhados de ativos, instruções de acesso, contatos de prestadores de serviços e outros elementos relevantes para a sucessão digital.

A integração entre soluções jurídicas e tecnológicas representa a abordagem mais eficaz para o planejamento sucessório digital, combinando a segurança jurídica dos instrumentos tradicionais com a praticidade e eficiência das soluções tecnológicas modernas.

  1. ASPECTOS TRIBUTÁRIOS E PROCEDIMENTAIS

6.1 Incidência do ITCMD

A tributação de ativos digitais na sucessão representa um dos aspectos mais complexos e controversos do planejamento patrimonial sucessório digital. O Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD), de competência estadual, incide sobre a transmissão de bens e direitos por sucessão, incluindo os ativos digitais com valor econômico [21].

A base de cálculo do ITCMD sobre ativos digitais apresenta desafios específicos relacionados à avaliação destes bens. Enquanto ativos tradicionais possuem métodos de avaliação consolidados, os ativos digitais, especialmente criptomoedas e NFTs, caracterizam-se pela alta volatilidade e pela ausência de mercados organizados uniformes. Esta volatilidade pode resultar em diferenças significativas de valor entre o momento da abertura da sucessão e o momento da efetiva transmissão dos bens.

Para criptomoedas, a avaliação deve considerar o valor de mercado no momento da abertura da sucessão, utilizando-se cotações de exchanges reconhecidas. Contudo, a multiplicidade de exchanges e a variação de preços entre elas pode gerar controvérsias sobre qual cotação deve ser utilizada como referência. Alguns estados têm desenvolvido critérios específicos para avaliação de criptomoedas, enquanto outros aplicam regras gerais de avaliação patrimonial.

6.2 Procedimentos no Inventário

O arrolamento de bens digitais no inventário exige procedimentos específicos que considerem as características técnicas destes ativos. O inventariante deve realizar investigação patrimonial abrangente para identificar todos os ativos digitais do falecido, utilizando-se de declarações de imposto de renda, extratos bancários, correspondências eletrônicas e outros documentos que possam indicar a existência de investimentos digitais.

A expedição de ofícios a exchanges constitui procedimento fundamental para verificação de saldos em criptomoedas mantidas em custódia. O sistema Infojud permite ao inventariante solicitar informações sobre operações com criptoativos declaradas à Receita Federal, facilitando a identificação de corretoras onde o falecido mantinha investimentos [22].

VII. DIREITO COMPARADO E EXPERIÊNCIAS INTERNACIONAIS

7.1 Legislações Estrangeiras

O direito comparado oferece importantes referências para o desenvolvimento da regulamentação brasileira sobre herança digital. Os Estados Unidos pioneiramente desenvolveram o Revised Uniform Fiduciary Access to Digital Assets Act (RUFADAA), que estabelece procedimentos específicos para acesso a ativos digitais por fiduciários, incluindo executores testamentários e administradores de espólios [23].

A União Europeia, através do Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR), aborda aspectos específicos da proteção de dados pessoais no contexto sucessório, estabelecendo que os direitos do titular de dados não são automaticamente transmitidos aos herdeiros, mas podem ser exercidos por eles em circunstâncias específicas [24].

7.2 Lições e Adaptações para o Brasil

As experiências internacionais demonstram a importância de regulamentação específica que equilibre direitos sucessórios, proteção de dados e interesses de terceiros. O Brasil pode beneficiar-se destas experiências adaptando-as às características específicas do ordenamento jurídico nacional e às necessidades da sociedade brasileira.

VIII. DESAFIOS E PERSPECTIVAS FUTURAS

8.1 Questões Emergentes

O desenvolvimento tecnológico contínuo cria novos desafios para o planejamento sucessório digital. A inteligência artificial e os ativos digitais autônomos representam fronteiras emergentes que demandarão adaptações futuras do direito sucessório. NFTs e propriedade intelectual digital introduzem questões específicas sobre direitos autorais e propriedade imaterial na sucessão.

O metaverso e os bens virtuais representam uma nova categoria de ativos digitais que pode assumir valor econômico significativo, demandando consideração específica no planejamento sucessório. Avatares, propriedades virtuais, itens de jogos e outros elementos do metaverso podem constituir patrimônio relevante para futuras gerações.

8.2 Necessidades Regulamentares

A urgência de legislação específica sobre herança digital torna-se cada vez mais evidente diante da crescente relevância econômica dos ativos digitais. A regulamentação deve contemplar não apenas aspectos patrimoniais, mas também questões de privacidade, proteção de dados e direitos da personalidade.

A harmonização com a proteção de dados constitui desafio fundamental para a regulamentação futura. A legislação sucessória digital deve equilibrar os direitos dos herdeiros com a proteção da privacidade do falecido e de terceiros, estabelecendo critérios claros para acesso a dados pessoais no contexto sucessório.

A capacitação do Poder Judiciário representa necessidade urgente para o adequado tratamento das questões sucessórias digitais. Magistrados, servidores e auxiliares da justiça devem receber formação específica sobre tecnologias digitais e suas implicações jurídicas para garantir decisões adequadas e eficazes.

  1. CONCLUSÃO

O presente estudo evidenciou que os ativos digitais representam uma realidade consolidada e crescente no patrimônio contemporâneo, demandando adaptação urgente do direito sucessório brasileiro para contemplar adequadamente suas características específicas. A ausência de regulamentação específica cria insegurança jurídica e pode resultar na perda irreversível de patrimônio significativo, como demonstram os casos de criptomoedas inacessíveis devido à perda de chaves privadas.

A análise das lacunas legislativas existentes revelou que o Código Civil de 2002, a LGPD e o Marco Civil da Internet não oferecem soluções adequadas para os desafios específicos da herança digital. O Projeto de Lei 4/25, atualmente em tramitação no Senado Federal, representa avanço significativo ao propor definição abrangente de bens digitais, critérios para inclusão na herança, proteção da privacidade e obrigações procedimentais específicas. Contudo, sua aprovação e implementação dependem do processo legislativo, que pode ser longo e sujeito a modificações.

Os criptoativos emergem como a categoria mais complexa de ativos digitais, apresentando desafios únicos relacionados às modalidades de custódia e às características técnicas específicas. A diferença entre custódia em exchanges e autocustódia em wallets pessoais determina estratégias sucessórias distintas, sendo a segunda modalidade particularmente desafiadora devido à dependência de chaves criptográficas privadas. As estatísticas revelam que, embora 90% dos investidores se preocupem com o destino de seus criptoativos, apenas 23% possuem planejamento sucessório adequado.

O desenvolvimento de estratégias jurídicas específicas para criptoativos mostrou-se fundamental, incluindo a gestão estratégica de chaves privadas através de carteiras multisig, a designação de beneficiários em exchanges e a utilização de testamentos especializados. O testamento cerrado apresenta-se como a modalidade mais adequada para incluir instruções técnicas sobre ativos digitais, permitindo sigilo das informações sensíveis durante a vida do testador.

Outras estratégias complementares, como holdings de ativos digitais, mandatos post mortem e soluções tecnológicas integradas, oferecem alternativas sofisticadas para patrimônios digitais complexos. A integração entre soluções jurídicas e tecnológicas representa a abordagem mais eficaz, combinando segurança jurídica com praticidade operacional.

Os aspectos tributários e procedimentais da sucessão de ativos digitais demandam atenção especial, particularmente quanto à avaliação de bens voláteis e à investigação patrimonial. O sistema Infojud e a obrigatoriedade de declaração de operações com criptoativos facilitam esta investigação, mas procedimentos específicos ainda precisam ser desenvolvidos.

As experiências internacionais, especialmente o RUFADAA americano e o GDPR europeu, oferecem importantes referências para o desenvolvimento da regulamentação brasileira, demonstrando a viabilidade de soluções que equilibrem direitos sucessórios, proteção de dados e interesses de terceiros.

Recomendações práticas para operadores do direito incluem: (i) orientar clientes sobre a importância do planejamento sucessório digital; (ii) utilizar testamentos cerrados para incluir instruções sobre ativos digitais; (iii) implementar estratégias específicas para criptoativos, incluindo carteiras multisig e designação de beneficiários; (iv) realizar investigação patrimonial abrangente em processos sucessórios; (v) manter-se atualizado sobre desenvolvimentos tecnológicos e regulamentares; e (vi) buscar capacitação específica sobre tecnologias digitais e suas implicações jurídicas.

Perspectivas para evolução legislativa incluem a aprovação do Projeto de Lei 4/25, o desenvolvimento de regulamentação específica sobre criptoativos e a harmonização entre direito sucessório e proteção de dados. A urgência destas adaptações normativas decorre da crescente relevância econômica dos ativos digitais e dos riscos associados à ausência de regulamentação adequada.

A herança digital representa um dos principais desafios jurídicos da era digital, demandando abordagem multidisciplinar que combine conhecimento jurídico, compreensão tecnológica e sensibilidade para as transformações sociais em curso. O sucesso na adaptação do direito sucessório aos ativos digitais determinará a capacidade do ordenamento jurídico brasileiro de acompanhar as transformações tecnológicas e garantir segurança jurídica para as futuras gerações.

A importância do tema transcende aspectos meramente técnicos ou econômicos, pois envolve a preservação de legados digitais que representam memórias, relacionamentos e expressões da personalidade humana na era digital. O direito sucessório digital deve, portanto, contemplar não apenas a transmissão patrimonial, mas também a preservação da dignidade humana e dos direitos fundamentais no ambiente digital.

O desenvolvimento de estratégias jurídicas específicas para garantir a sucessão de criptoativos, incluindo gestão de chaves privadas, designação de beneficiários e testamentos especializados, representa avanço significativo na proteção do patrimônio digital. A aprovação do Projeto de Lei 4/25 proporcionará maior segurança jurídica e direcionamento específico para a sucessão de bens digitais, marcando nova era na regulamentação da herança digital no Brasil.

REFERÊNCIAS

[1] LANA, Henrique Avelino; FERREIRA, Cinthia Fernandes. A herança digital e o direito sucessório: nuances da destinação patrimonial digital. IBDFAM, 2023. Disponível em: https://ibdfam.org.br/artigos/1989/A+heran%C3%A7a+digital+e+o+direito+sucess%C3%B3rio%3A+nuances+da+destina%C3%A7%C3%A3o+patrimonial+digital

[2] BRASIL. Instrução Normativa RFB nº 1.888, de 3 de maio de 2019. Institui e disciplina a obrigatoriedade de prestação de informações relativas às operações realizadas com criptoativos à Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil.

[3] BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil.

[4] BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD).

[5] BRASIL. Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil.

[6] BRASIL. Senado Federal. Comissão de Juristas responsável pela elaboração de anteprojeto de atualização do Código Civil. Relatório Final, 2024.

[7] BRASIL. Projeto de Lei nº 4, de 2025. Altera dispositivos da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), para disciplinar a sucessão de bens digitais.

[8] Ibid.

[9] Ibid.

[10] BRASIL. Instrução Normativa RFB nº 1.888/2019, art. 5º, inciso I.

[11] NUNES, Dierle; MIRANDA, Mathaus. Testar é preciso: planejamento sucessório de criptoativos e herança digital. Consultor Jurídico, 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-set-01/testar-e-preciso-planejamento-sucessorio-de-criptoativos-e-heranca-digital/

[12] Ibid.

[13] Ibid.

[14] Ibid.

[15] BRASIL. Instrução Normativa RFB nº 1.888/2019.

[16] NUNES, Dierle; MIRANDA, Mathaus. Op. cit.

[17] CREMATION INSTITUTE. Cryptocurrency Estate Planning Study, 2023.

[18] BRASIL. Código Civil, art. 1.857, §2º.

[19] BRASIL. Código Civil, art. 1.875.

[20] BERRY CONSULTORIA EMPRESARIAL. O que é holding de ativos digitais? 2025. Disponível em: https://berryconsult.com/blog/o-que-e-holding-de-ativos-digitais

[21] BRASIL. Constituição Federal, art. 155, I.

[22] BRASIL. Instrução Normativa RFB nº 1.888/2019.

[23] UNIFORM LAW COMMISSION. Revised Uniform Fiduciary Access to Digital Assets Act (RUFADAA), 2015.

[24] UNIÃO EUROPEIA. Regulamento (UE) 2016/679 (GDPR), art. 27.

 

[1] Advogado especializado em planejamento patriminial sucessório